O progresso técnico e científico, que foi capaz de apaziguar as forças da natureza, tornando a vida mais confortável para os homens, não foi capaz de criar as condições objetivas para a felicidade humana. A civilização não foi capaz de cultivar sua própria humanidade. Ao contrário, a civilização se tornou uma nova forma de selvageria, tornou-se uma segunda natureza. Hoje, os homens não temem mais os animais selvagens ou as forças míticas da natureza, mas temem as potências aniquiladoras da sociedade. O medo da fome, da miséria, da violência, do desemprego, da criminalidade e da exclusão social substituiu o medo do selvagem das forças naturais. Para usufruir dos benefícios da sociedade, o homem moderno teve que racionalizar sua ação para sobreviver. Ele foi forçado a regredir seus instintos a estágios antropologicamente mais primitivos. Essa condição regressiva é imanente às sociedades modernas. É fundamental para a manutenção do modo de produção capitalista.
No homem primitivo, o Ego se desenvolveu por causa do medo
da morte diante das forças destrutivas da natureza. Já no homem moderno, o Ego
se desenvolve por causa do medo das forças aniquiladoras da sociedade. É pelo
mesmo instinto de autoconservação que o Ego se forma. Tal como o selvagem
mimetizava as forças míticas da natureza para sobreviver, o homem moderno
mimetiza as forças opressoras da realidade. O indivíduo imita as formas de
comportamento e padrões de pensamento e conduta socialmente exigidos,
identificando com o existente. Como ser agressivo de si mesmo, ele mobiliza
todas as suas forças e todo seu pensamento para ganhar a vida. Como avalia
Horkheimer (2002, p. 146): “Através da repetição e imitação das circunstâncias
que o rodeiam, da adaptação a todos os grupos poderosos a que eventualmente pertença,
da transformação de si mesmo de um ser humano em um membro da organização, do
sacrifício de suas potencialidades em proveito da capacidade de adaptar-se e
conquistar influência em tais organizações, ele consegue sobreviver. A sua
sobrevivência se cumpre pelo mais antigo dos meios biológicos de sobrevivência,
isto é, o mimetismo.”
A produção do medo como forma de dominação é característica
de uma sociedade que se tornou administrada. Adorno e Horkheimer em seu
livro Dialética do Esclarecimento mostraram que essa forma de
sociedade surgiu com o avanço da técnica, com o advento do capitalismo
monopolista. A sociedade administrada se define como uma forma de dominação
social calcadas na racionalidade técnica, econômica e administrativa, onde os
indivíduos são transformados em objetos de organização, controle e planejamento
em larga escala. A partir desse aparato a sociedade capitalista foi capaz de
desenvolver formas de consciência, padrões de comportamento e atitudes que
predispõem os indivíduos a aceitar e interiorizar seus mandamentos. Nessa forma
de sociedade, a consciência se forma no contexto de uma realidade totalmente
reificada. Os indivíduos ao reduzirem sua vida ao trabalho, ao consumo e aos
entretenimentos idiotizados da indústria cultural, deixaram que seu pensamento
e imaginação fossem modelados pela produção de mercadorias. Como observa Adorno
(1995, p. 43), “se a pessoas querem viver em sociedade, nada lhe resta senão se
adaptar à situação existente, se conformar; precisam abrir mão daquela subjetividade
autônoma a que remete a ideia de democracia.”
Em um aforismo de Mínima Moralia, Devagar e Sempre,
Adorno fala sobre a pressa dos indivíduos nas ruas dos grandes centros urbanos.
Ele vê nessa pressa traços mnemônico de épocas passadas. Essa correria do dia a
dia nas grandes cidades parece o antigo medo do selvagem ao fugir de um
predador na selva. Hoje, mesmo que o homem tenha dominado as forças da natureza
e desfrute de uma grande segurança na civilização, ele ainda teme a sua
aniquilação. Por este motivo, está sempre correndo para cumprir seus
compromissos: “Houve tempo em que se corria de perigos que não admitiam
descanso, e inadvertidamente ainda o demonstra quem corre atrás do ônibus. A
ordenação do tráfego não mais precisa preocupar-se com animais selvagens, mas
não chegou a pacificar a corrida […] Torna-se visível a verdade de que não se
está seguro da segurança, que estamos condenados a fugir das potências
desenfreadas da vida” (ADORNO, 2008a, p. 158).
O grande objetivo da produção do medo na sociedade
administrada foi tornar os indivíduos cada vez mais adaptados e eficientes. O
crescimento individual deve se transformar em eficiência padronizada. Em um
mundo dominado pelas mercadorias, o indivíduo também se torna uma mercadoria.
Ele se esforça para obter conhecimentos, competências e habilidades para se
tornar uma mercadoria cada vez melhor. Seu sucesso depende cada vez mais de sua
capacidade de adaptação às pressões que a sociedade exerce sobre ele. Segundo
Marcuse (1999, p. 78), “essa eficiência se caracteriza pelo fato de que o
desempenho individual é motivado, guiado e medido por padrões externos ao
indivíduo, padrões que dizem respeito a tarefas e funções predeterminadas. […]
O indivíduo eficiente é aquele cujo desempenho consiste numa ação somente
enquanto seja a reação adequada às demandas objetivas do aparato.”
O preço que o homem pagou pela sua adaptação às exigências
da sociedade foi sua autorenúncia. Ele renunciou à sua individualidade, à sua
autonomia e à sua autoconsciência. As suas qualidades ativas e as relações
estabelecidas com a sociedade se tornaram passivas, fixas e automáticas. Como
observa Goldman (2008, p. 139): “Em tal sociedade, a consciência tende, com
efeito, a tornar-se um simples reflexo, a perder toda função ativa, à medida
que o processo de reificação – conseqüência inevitável de uma economia
mercantil – se estende e penetra no âmago de todos os setores não-econômicos do
pensamento e da afetividade.”
Ao tornar o sentimento de medo um instrumento para
administrar os sujeitos, o mundo industrial capitalista se confronta diante
deles como algo absoluto e esmagador. O resultado disso foi que os indivíduos
foram transformados em átomos sociais isolados, não conscientes da totalidade
que os oprime. Quando o todo se dissolve no indivíduo, ele desaparece e
torna-se mero objeto social. Cada um é transformado em um modelo da gigantesca
maquinaria econômica. Como aponta Adorno (2008b, p. 103): “Um traço essencial
dessa sociedade é que seus elementos individuais são apresentados, ainda que de
modo derivado e a seguir até mesmo anulado, como relativamente iguais, dotados
com a mesma razão, como se fossem átomos desprovidos de qualidades, definidos
propriamente apenas por meio de sua razão de autoconservação, mas não
estruturados em um sentido estamental e natural.”
O que caracteriza a sociedade administrada é que sua
organização social continua sendo heterônoma, isto é, nenhuma pessoa pode
existir na sociedade capitalista realmente conforme suas próprias
determinações. Na medida em que o mundo se nivelou pela forma da mercadoria, o
ego ajustado à realidade aprendeu a ordem e a subordinação por meio do aparato
econômico que a tudo engloba. Desse modo, “os fenômenos da alienação baseiam-se
na estrutura social.” (ADORNO, 1995, p. 148). A adaptação, o conformismo, a
ausência de autorreflexão, o comportamento convencional são características
dessa sociedade. Em razão disso, para Adorno e Horkheimer (1985, p. 41), “é
exatamente o progresso bem-sucedido que é culpado de produzir seu próprio
oposto. A maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão.”
Referências
ADORNO, Theodor. Minima Moralia: reflexões da vida
lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008a.
ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. São Paulo:
Editora UNESP, 2008b.
ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1995.
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do
Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
GOLDMANN, Lucien. A reificação das relações sociais. In:
FORACCHI, Marialice; MARTINS, José (Orgs.). Sociologia e sociedade. Rio de
Janeiro: LTC, 2008, p. 137-146.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro,
2002
MARCUSE, Herbert. Algumas Implicações Sociais da Tecnologia
Moderna. In: Tecnologia, Guerra e Fascismo, São Paulo: Editora
Unesp, 1999. p. 71-104.
Michel
Aires de Souza Dias – Mestre em Filosofia pela UFSCAR. Doutor
em Educação pela USP.
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