A cada semana surgem novas ou ressurgem velhas mentiras com roupagem nova. Isso há quase três anos. Quantas centenas (milhares?) de artigos já foram escritos, repercutindo publicações em jornais, revistas, online, contando as distorções espalhadas pelas fake news sobre diversos temas. Desta vez, a mentira cabeluda atravessou fronteiras, ganhou espaço na imprensa internacional e ridicularizou não só o presidente Bolsonaro, nosso Pinóquio de plantão, como o próprio Brasil.
Não teria chegado a hora de se por um fim à repetição de
shows e ridículos espetáculos que envergonham a maioria dos brasileiros? Não
haverá limite para essa sequência deprimente, tantas vezes grotesca e
insultuosa, como se a classe política desconhecesse o desgaste, os malefícios
ao que se expõe o país? Essa absurda história de vacina poder provocar Aids não
poderia ser a gota d’água para se baixar a cortina e mandar o show-man para os
bastidores?
Com minha experiência de correspondente, não posso imaginar
nenhum país democrático do mundo tolerando um presidente tão mal-informado,
afrontando cientistas, organizações internacionais de saúde, médicos,
sanitaristas, para impor uma visão inspirada em charlatães, curandeiros,
conspiradores, negacionistas e todo um rebotalho de extremistas. Não se trata
de uma questão de política de esquerda ou de direita, de privatização ou
socialização, mas de um mínimo de bom senso.
A manutenção de Bolsonaro no poder vem se tornando
prejudicial, onerosa e danosa para o país. Mesmo os setores que lhe eram os
mais fiéis chegaram a essa conclusão — depois de terem investido o máximo na
agropecuária, seus empresários se defrontam agora com embargos provocados pela
repercussão mundial das frases tolas e nada diplomáticas. A recusa de
importação da carne, o encarecimento dos transportes e a desvalorização do real
não estava no programa dos desmatadores.
Hoje, Bolsonaro se cristalizou com o símbolo mundial do
irresponsável em termos de ecologia. Às vésperas de um encontro mundial, no
qual todos os países vão procurar discutir medidas capazes de reverter o
aquecimento do planeta, o governo Bolsonaro irá a Glasgow, na Escócia, sem um
plano ou projeto contra a mudança climática, ao mesmo tempo em que continuam o
desmatamento da Amazônia, considerada o pulmão do planeta. Mas a posição
brasileira, como deixavam ver os ex-ministros Ernesto Araújo e Ricardo Salles,
do Exterior e Meio Ambiente, não provinha de uma avaliação científica; era
ditada apenas pelo interesse em aumentar os ganhos dos setores agrário e
pecuário.
Com a saída de cena de Donald Trump. nos Estados Unidos, é
Bolsonaro quem simboliza agora o movimento de resistência às vacinas e tipifica
a pior gestão da crise sanitária, responsável pelo atraso na aplicação de
vacinas no Brasil. Novamente, não se trata de uma posição científica, fruto de
estudos de especialistas e cientistas brasileiros, porém de uma decisão pessoal
do presidente, influenciada pelos grupos negacionistas trumpistas
norteamericanos.
A decisão das principais plataformas mundiais de redes
sociais Facebook, Youtube e Instagram de bloquearem o vídeo divulgado pelas
numerosas redes bolsonaristas, nas quais Bolsonaro se servia do texto de um
site inglês propagador de fake news ou mentiras, não deixa de ser um tanto
vexatória para as autoridades políticas e judiciárias brasileiras, que têm
tolerado a repetição desse tipo de mentiras de Bolsonaro e seus seguidores
sobre as vacinas.
Mostrando ter sido ultrapassado o limite tolerável do show
de mentiras, o próprio presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira, que tem
segurado na gaveta mais de cem pedidos de impeachment do presidente, saiu da
neutralidade habitual, pela primeira vez, ao admitir que o presidente Bolsonaro
terá de “pagar” por sua declaração, se não tiver base científica. Renan
Calheiros, por sua vez, informou haver ainda tempo para incluir essa nova
mentira de Bolsonaro no relatório final da CPI do Senado.
Mentira tem perna curta, mas uma mentira puxa outra:
consciente de ter ultrapa ssado o limite do tolerável, Bolsonaro tentou jogar
na revista Exame a má informação. Essa nova mentira não colou, pois era matéria
da Exame, publicada em outubro de 2020. A própria Exame informou “terem sido
análises feitas em 2007. Por ora, nenhum teste realizado com as vacinas da
covid mostrou resultado semelhante”. A matéria da Exame, citando o jornal
científico The Lancet, não dava margem à exploração mentirosa feita por
Bolsonaro, pois dizia “até agora, não se comprovou que alguma vacina contra o
covid-19 reduza a imunidade a ponto de facilitar a infecção em caso de
exposição ao vírus” (da Aids).
Na verdade, Bolsonaro devia ter recebido do seu gabinete
paralelo a mentirosa informação, já traduzida do inglês — no vídeo ele aparece
lendo uma página impressa. A agência Aos Fatos, numa minuciosa, mas saborosa
informação, fez um balanço das mentiras pronunciadas por Bolsonaro. Quem se
esqueceu daquela mentira de que vacina faz virar jacaré! “Em 1028 dias como
presidente, Bolsonaro deu 4153 declarações falsas ou distorcidas. Esta base
agrega todas as declarações de Bolsonaro feitas a partir do dia de sua posse
como presidente. As checagens são feitas pela equipe do Aos Fatos
semanalmente”.
Enfim, a Jovem Pan, ardorosa defensora de Bolsonaro, pelo
jeito também não quis encampar o fake Vacina-Aids. No Morning Show, a manchete
era “Bolsonaro dá munição para a esquerda bater nele”, enquanto só o
bolsonarista convicto Adriles Jorge desculpava o presidente por não saber bem
se expressar, mas é totalmente contra a supressão dos vídeos nas plataformas,
em nome de uma discutível e estranha liberdade de expressão, na qual se pode
falar tudo até mentira, já que — segundo ele — não existe um pretendido
monopólio da verdade.
É a teoria dos sofistas assumida pelos bolsonaristas, porém
a mentira contra fatos científicos não está protegida pela liberdade de
expressão. Teria chegado o momento de se tirar Pinóquio do palco?
***
Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e
ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento
internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação
da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda
Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas
suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica
da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa,
Correio do Brasil e RFI.
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